A Sombra do Desespero - Capítulo 2 (P.2)
Dou-vos então a conhecer a última parte do livro de que tenho falado no Blog. Espero que gostem. Se quiserem acompanhar os meus progressos podem fazê-lo no meu perfil de Facebook ( https://www.facebook.com/profile.php?id=100011804282693 ) ou, por alternativa, seguir parte do meu trabalho e também o do Books Market no perfil da loja ( https://www.facebook.com/booksmarket.pt/?fref=ts ). Obrigada pela atenção!
Acordo com o bater forte do sol na minha janela. Inspiro fundo para ganhar coragem e recomeçar. Recomeçar é uma palavra ótima quando se tem esperança. Eu tenho esperança. Levanto-me do sofá onde adormeci a noite passada sem qualquer vontade de me deitar na mesma cama que o Mateus. O meu corpo dorido queixa-se dos movimentos rápidos, lembrando-me do acidente da noite passada. As dores não são o suficiente para me impedir de conquistar o meu dia. Tomo um banho, cheia de energia e coragem para retomar o caminho rumo à felicidade. A felicidade é algo que não me pertence há um ano. Eu estou incansavelmente disposta a tentar e a conseguir. Um ano sem sorrir levou-me ao fundo do poço. Evitar o luto foi um erro e passarei por ele se for essencial a esta nova etapa. O luto é um processo interior tão pessoal, que a dor de o suprimir rasga a alma.
Deixo que a água lave os resíduos de tristeza e mágoa. Seco-me com uma toalha macia e enrolo-a em redor do meu corpo magro e esguio. Olho-me ao espelho e mal me reconheço. Não presto atenção à minha aparência há tanto tempo que nem me recordo da última vez que me vi ao espelho. Saio da casa de banho com a toalha envolta em mim e entro sorrateiramente no quarto, onde dorme o Mateus, para procurar no guarda-roupa algo que possa vestir. Com a mínima faixa de luz do meu telemóvel, encontro algumas peças bonitas e, com elas, caminho em paços de lã para fora do quarto. Tento fechar a porta devagarinho e silenciosamente, mas sem sucesso. Ele acordou. Finjo não perceber e caminho de volta para a casa de banho. Estou com a mão na maçaneta da porta de acesso à casa de banho, quando oiço a sua voz dura.
- Rita? – Ao ouvir isto, fecho os meus olhos com força e suspiro baixinho. Viro-me para o enfrentar.
- Desculpa. Não queria acordar-te. – Cerro os maxilares e tento não pensar no que já fomos e na distância em que estamos agora.
- Não faz mal. Vais sair? – Pergunta-me, depois de esfregar os olhos de sono.
- Vou sim. Sei que não reparaste, porque estás demasiado ocupado para mim, mas ontem tive um acidente grave. - Os olhos dele abrem-se refletindo o imenso espanto.
- Um acidente grave? – O tom da sua voz parecia desconfiado.
Sem pensar duas vezes, deixo a toalha de banho escorregar pelo meu corpo. É a primeira vez, em muitos meses, que fico nua em frente ao Mateus. Isso parece despertar mágoa nele de alguma forma. Cada marca em mim relembra-o de como ele nunca mais me olhou. Como provas do acidente, tenho algumas nódoas negras e leves arranhões. Com toda a agitação, só percebi estes leves ferimentos quando a médica me examinou. Eu estou horrível, mas não me incomodo em mostrar-lhe como me encontro realmente. Ele conhece o pior de mim e eu sei que ele não me ama. As minhas pernas têm leves arranhões, tal como as minhas mãos cortadas. O meu peito estava traçado com uma enorme nódoa negra que marca firmemente o local onde o cinto de segurança me esmagou.
Petrificado, ele olha-me. Algo nele descobriu uma imensa verdade. Eu vejo nos seus olhos aquele vazio de quem não sente nada. Não há nada nele que desperte qualquer tipo de sentimento. Não há remorso, vergonha, pena, preocupação e, muito menos, amor. Ele está apenas espantado em como não sente absolutamente nada. E talvez queira sentir qualquer coisa, mas o coração não mente. O coração não engana. E eu também não me engano. O Mateus dá um passo em frente e para. Quer dizer alguma coisa, mas fica calado.
- Eu não fazia ideia. Desculpa. – Eu sorri sem vontade e apanhei a toalha enrolando-a no meu corpo outra vez.
- Não precisas de me mentir. Nenhum de nós precisa de mentir.
- Do que é que estás a falar? – Olhei-o nos olhos.
- Não te importas verdadeiramente comigo. Não há um pingo de emoção nos teus olhos. O Mateus que conheci na faculdade viraria o mundo ao contrário por mim, mas ontem nem sequer quiseste saber o que se passou. Não dormimos juntos. Não nos beijamos. Não fazemos amor. Nem sexo. Não falamos um com o outro. – Fixo o teto e rio, expressando de vez a minha insanidade.
- O que queres dizer com isso? – Gagueja.
- Isto acabou, Mateus. Acabou há tanto tempo. – Pronto. Estava dito.
- Estás a acabar comigo? – Parece indignado, o que só lhe confere um ar ainda mais paranoico do que o meu. Inclino a cabeça para tentar perceber o seu ponto de vista, mas não entendo.
- Estou só a dizer aquilo que ambos pensámos e não dissemos antes. Isto já não faz sentido. Eu e tu, somos eu e tu. Não há nós. Não há planos a dois e uma vida pela frente. – Giro os calcanhares e ponho a mão na maçaneta. – Lamento.
Entro na casa de banho e visto-me, ainda abalada pela conversa vaga. Ele não disse mais nada. Ficou lá fora a olhar-me embasbacado e não veio ter comigo, nem tentou falar comigo através da porta. Momentos como este quebram-me. Mesmo que já não o ame, passei muito tempo com ele e ver tudo acabar desta forma triste, deixa-me fraca. Penteio o meu cabelo comprido e loiro escuro numa bela trança lateral e olho-me ao espelho. Sinto-me exausta, mas determinada. A camisa verde-tropa dá-me um ar jovem e as calças pretas assentam-me na perfeição. Saio da casa de banho.
O Mateus espera-me no sofá da sala com as calças de desporto descaídas na cintura e o peito nu. É atraente, como sempre. No entanto, nada em mim desperta. Não quero agarrá-lo e não tenho em mim aquele desejo de tê-lo para sempre. Ele olha-me como se eu fosse uma estranha e talvez, mas só talvez, eu deva sê-lo. Já não nos conhecemos. Encaminho-me para o quarto, abro as precianas com veemência e procuro o meu casaco.
- Rita, precisamos de falar…
- Não. – Interrompo. – Não, Mateus. Nós não precisamos de falar.
- O que é que se passa?
- Os meus pais morreram. – Enfrento-o como nunca antes fiz. - Odeio dizê-lo e soa horrivelmente doloroso saído da minha boca, mas é a mais pura das verdades. Estive mal. Estive no fundo do poço. Chorei todos os dias e só não chorei todas as horas porque a Sara me fazia sorrir. Afastaste-te de mim. Deste-me espaço sem que eu to pedisse. Deste-me distância e isso era a única coisa que eu não precisava. Caí e tentei levantar-me vezes sem conta, mas ninguém esteve lá para me ajudar. – Ele ri-se.
- Estás a dizer que sou o culpado? Tu é que saías sem dizer para onde ias. Tu é que estavas sempre a chorar. Eu tentei acompanhar-te em todo o luto, mas não deixaste. – As suas veias do pescoço estavam agora salientes. Vermelho de raiva grita-me como se tivesse um furacão por libertar há muito tempo. E talvez tivesse. – Deixaste-me sozinho para poderes lidar com os teus problemas e percebi isso. Mas tinha uma filha para cuidar. A Sara não podia perceber isto. Ela também passou momentos difíceis. É uma criança e tu, como mãe, devias ter estado lá.
- Chega! – Grito. – Eu estive lá, Mateus. Estive mesmo. Eu contei-lhe que os avós eram estrelas no céu. Limpei-lhe as lágrimas nos sábados em que ela chorou porque os avós não tinham ido passear com ela. Eu dei-lhe carinho e brinquei com ela. Podes acusar-me de tudo, menos de ter sido uma mãe presente. Fui ingrata contigo, sim. Estivemos juntos tanto tempo e eu não soube cuidar do que tivemos. Mas eu não sou a única culpada em toda esta história. Tu devias ter-te preocupado comigo, devias ter-me dado a mão. – A minha garganta estava apertada. – Devias saber como amar-me incondicionalmente.
- Como se ama alguém que não existe? Parecias uma alma. Mal comias ou dormias. Não falavas comigo. – Os meus olhos humedeceram e o meu corpo tremeu. – Oh! Fantástico! Vá, chora! – Viro-lhe as costas e choro. O meu corpo treme enquanto eu engulo todos os soluços. - Chora e diz-me que não foi isso que fizeste todo este tempo. Foi um ano, Rita! Um ano em que não houve nada em ti para além de mágoa. Mudaste completamente. Não és a mulher por quem me apaixonei.
- Também não és o homem por quem me apaixonei. – Sussurro, mas sei que ele me ouve. – Foi um ano. Um ano cheio de tristeza, perda e dor. Tanta dor. Eu tremia todos os dias ao acordar, com a sensação de que tinha perdido algo em mim que nunca mais ia voltar. Foi um ano. Um ano em que a mágoa me possuiu e eu estive sozinha com essa constante. Um ano em que as estrelas estavam cheias de céu e o meu coração estava vazio.
- Vais filosofar agora, é? – Diz ele. Frio. Coração gélido e mimado que não conhece a perda. Mas eu conto-lhe como é.
- Ainda não perdeste os teus pais. Não sabes como é. – Continuo a fitar a parede, de costas para ele e a falar sussurrando. – Mas vais perder. É a lei da vida. Vai doer como jamais te poderei explicar e vais sofrer como jamais sofreste. Vais aprender a amar a solidão e vais odiar os sorrisos das pessoas. Vais odiar todas as tentativas que façam para te manter feliz. O mundo é cruel e não conheces nada para além de ti próprio. Esse teu egoísmo e essa tua frieza afastaram-me de ti. – Virei-me para ele com a face encharcada de dor. – Ou talvez seja apenas eu. Talvez eu seja muito pouco resiliente para poder ultrapassar a morte dos meus pais. Apesar disso, não conheces o sentimento de perda. Por isso, não te atrevas a criticar-me. Só eu sei como tentei erguer-me. Sozinha. – Sorri ironicamente. – Agora, levantei-me. Não foste o único culpado. Eu chorei e afastei-me. Mas tu deixaste-me ir. Acabou, Mateus. Já não me amas e eu… Eu também não te amo. Acabou.
Limpo as lágrimas, calço umas botas de cano alto e visto o casaco de cabedal. Encaminho-me para a porta enquanto cubro o meu pescoço com um cachecol verde. Ele segue-me e olha-me com uma expressão que nunca lhe vi antes.
- Isto vai acabar assim? Sete anos de namoro, uma filha com quase cinco anos e uma história juntos. – A sua cara aparenta um imenso pesar. Ombros descaídos e os olhos cheios de pena. Reparo, agora, como ele envelheceu neste último ano. E espelhada nele, estou eu. Ambos envelhecemos neste ambiente de amor podre.
- Podia ser pior. Podíamos estar casados. – Sem um pouco de felicidade no rosto, ponho o telemóvel e a mini carteira nos bolsos.
- Onde vais, afinal? – Dou uma gargalhada sem qualquer humor.
- Agora preocupaste? Incrível. Não que queiras saber, mas vou visitar uma pessoa ao hospital.
- Ah, ainda agora acabámos e já andas metida na cama com alguém? – Dou-lhe um estalo, movida pela raiva. Ele parece chocado, mas não tenho pena.
- Não te admito esse tipo de insinuações. Eu fui-te fiel, mesmo depois de deixar de te amar. Devias pensar no que dizes. – Posso notar-lhe o arrependimento, mas é tarde demais.
- Desculpa.
- Desculpa? Porquê? Por me teres deixado sozinha quando mais precisei de ti ou por me teres acusado de andar a dormir com o tipo que quase matei ontem? – Acuso.
- Eu não…
- Esquece. – Impeço-o de continuar. – Depois do almoço, venho buscar a Sara para irmos ao cinema. Até logo. – E saio.
O frio de Dezembro enregela-me a face. Felizmente, não está a chover. Entro no Audi e sigo até ao hospital, sem me preocupar com o facto de estar a levar o carro do Mateus sem pedir autorização. Está um certo nevoeiro mas, mesmo assim, as luzes de natal vêm-se ao longe e posso imaginar as famílias a rir de festejo. Daqui a três dias é Dia de Natal. Eu ainda não tenho a árvore de Natal feita e a casa não está enfeitada. No meio de tudo isto o que me preocupa realmente é a Sara, e o momento em que eu lhe contar que os pais já não estão juntos. Como se explica a uma criança que os pais dela se estão a separar?
Estaciono o carro, depois de uma exaustiva viagem por entre o nevoeiro. Recordo o tempo em que o meu avô me contava a história do rei D. Sebastião e os grandes feitos dos portugueses. Era o mais fiel patriota que já conheci nesta incrível nação. Ele contava-me as histórias dos livros que leu, mas nunca as histórias dele. Muitas vezes lhe perguntei como fora a guerra colonial, mas ele não parecia interessado em dar-me a conhecer o sangue e o sofrimento. Preferia contar-me histórias de esperança e garra. O meu avô também partiu. Todos partem à medida que o tempo passa.
Entro no hospital e encaminho-me para o quarto onde estava o homem do acidente. Daniel Mota. Quando o visitei, na noite anterior, estava a dormir. Cada passo que dou pelo comprido corredor, é um passo cheio de esperança. Transpiro nervosismo e o meu coração bate tão forte quanto pode. Retiro o cachecol, quando me assume uma vaga de calor. Abro a porta do quarto depois de bater três vezes. Entro com cuidado e silêncio. Sinto medo e vergonha. No fim de contas, podia ter morto este homem.
O homem está deitado na cama de hospital. Tem um penso na cabeça e está a sorrir. Posso, pela primeira vez e com calma, permitir-me observar os seus olhos verdes. Os meus olhos também são verdes, mas ele tem olhos mais claros do que os meus. Já não lhe escorre sangue pela testa e parece mais saudável. A palidez doente não se faz cor da pele. Os seus cabelos negros estão despenteados e ele não para de me sorrir um único segundo. Tapado com um fino lençol que deixa à vista os contornos das suas pernas. Parece, sem dúvida, um novo homem.
- Olá. Sou a Rita. – Digo envergonhada.
- Prazer, Rita. Sou o Daniel.
- Eu sei.