A Sombra do Desespero - Capítulo 1 (P. 2)
Apresento-vos agora a segunda parte do primeiro capítulo do livro que estou a escrever atualmente. Espero que gostem e que estas palavras fomentem, nos vossos corações, a curiosidade para ler mais e mais. Com o apoio da Books Market ( booksmarket.pt ).
O homem jazia no lugar do condutor ainda com as mãos no volante e de olhos fechados. A cabeça dele sangrava e estava quieto. Aproximei-me e abri a porta do carro para perceber se o homem ainda tinha salvação. O homem parecia rondar os seus vinte e cinco anos e tinha cabelo preto. O meu coração corria a uma velocidade alucinante e os meus pulmões pararam de funcionar quando verifiquei a pulsação do homem. Deixei escapar um suspiro tremido quando percebi que o homem estava vivo. Corri desajeitadamente e cheia de dores até ao meu carro. Lembro-me de ter escorregado no alcatrão e ter caído, mas ergui-me logo depois disso. Procurei o meu telemóvel e liguei para o 112. Repeti que era uma emergência vezes sem conta, suplicando que chegassem depressa.
Assustada, concentrei-me no homem e apelei para que demonstrasse algum sinal de estar bem. Nada aconteceu. Tentando não movimentar o corpo em demasia, abanei-o um pouco. Nada parecia resultar. Procurei a ferida escondida pelos seus cabelos, pois precisava de parar o sangramento. Peguei no meu casaco fino demais para o frio da noite e estanquei-lhe o sangue da ferida. O golpe parecia fundo, provavelmente deixaria cicatriz. A ambulância demorou uma eternidade a chegar e eu fiquei ali a eternidade toda a cuidar dele.
- Por favor, acorde… Não sei o que fazer. – Disse enquanto o olhava, exasperada.
Penteei-lhe os cabelos finos e verifiquei o estado do corte, situado no canto superior esquerdo da testa do homem. A lesão estava em mau estado e temi pela saúde do rapaz. Felizmente, o sangue parecia ter diminuído consideravelmente. Continuei a pressionar o casaco contra a ferida com veemência e muita esperança. Enquanto isso, olhei-o. Era bonito. Os cabelos escuros davam-lhe um aspeto sereno e jovem. Era magro e estava um pouco pálido, mas era forte. Segurei-lhe a mão e suspirei um perdão. A chuva continuava sem cessar, cobrindo o meu corpo gelado. O vento fazia as gotas de água cada vez mais violentas e imparáveis. Julguei que era o fim do mundo.
De súbito, um gemido pairou no ar. Despertando para o acontecimento, percebi que o homem estava a acordar. Larguei-lhe a mão e observei na sua face um esgar de dor. Ainda não tinha aberto os olhos, quando levou a sua mão ao joelho direito.
- Como se sente? Consegue ouvir-me? – Questionei. Ele parecia cansado demais para me responder. Estava ofegante. Fiquei em alerta. – Façamos assim, vou fazer-lhe algumas perguntas e o senhor aperta a minha mão uma vez para dizer “não” e duas vezes para dizer “sim”, está bem? – Expliquei enquanto lhe dava a minha mão e ele acenou devagar. – Dói-lhe o joelho direito? – Ele apertou duas vezes a minha mão. – Dói-lhe mais alguma coisa? – Dois apertos. – Dói-lhe a cabeça, certo? – Dois apertos. – Mais alguma coisa? – Um aperto. – Sabe o que aconteceu? – Um aperto. – Eu fui contra a sua viatura e houve um acidente, o senhor bateu com a cabeça. Eu já chamei a ambulância e eles estão a caminho. Tente não se mexer muito, para não agravar os danos. Apenas procure relaxar e respirar calmamente, mas não adormeça. Está a compreender-me? – Dois apertos. – Ótimo. Consegue dizer-me a sua idade?
- Vinte e oito. – Murmurou com uma voz rouca.
- Está bem. Sente mais alguma coisa que eu deva saber? – Um aperto. – Muito bem. Vai voltar tudo ao normal. Tem alguém a quem eu possa comunicar a ocorrência? Um familiar ou um amigo? – Um aperto. Céus. Ninguém.
O homem abriu os olhos a custo, finalmente. Analisou-me com atenção e tentou sorrir, sem sucesso. Ao longe, sirenes fizeram-se ouvir e fui preenchida por uma imensa sensação de alívio. A minha salvação. Encostei a cabeça à porta do carro e respirei fundo. Larguei a mão do homem e gesticulei à ambulância para que parasse.
Minutos depois, o homem já se encontrava na maca e pronto para entrar no INEM. Eu estava também dentro da viatura a ser cuidada e a falar com uma enfermeira. A menina passou-me uma manta para que eu me cobrisse. Tremelicante, descrevi o acontecimento.
- É um homem de vinte e oito anos. Pelo que me disse dói-lhe o joelho direito e o canto superior esquerdo do lobo frontal, devido ao corte. Já lhe expliquei a ocorrência. Não parece ter amnésia, mas não percebeu bem o que aconteceu. Foi tudo muito rápido. Não aparenta distúrbios psicológicos, mas não tenho a certeza de estar totalmente bem.
- Entendido. Alguma identificação? – Perguntou a enfermeira enquanto anotava as informações.
- Não. Não cheguei a perguntar, nem procurei os documentos. No entanto, está apto a responder-lhe a quaisquer perguntas. Ele falou comigo. – Assegurei.
- Obrigada pela ajuda. Foi essencial a sua prestação. Agora, diga-me, como se sente? Tem algum ferimento? – Interrogou a enfermeira bonita.
- Sinto o peito pisado e dói-me a cabeça. De resto, está tudo bem. Nada irreversível. Estou apenas preocupada. Foi um lapso enorme e lamento imenso tudo isto. – Solucei sem lágrimas e apoiei a cabeça nos meus joelhos encolhidos.
- Vai ficar tudo bem, menina. Agora, vamos proceder à verificação dos ferimentos do senhor através de algumas análises e também vamos perceber se está tudo bem consigo e se não houve qualquer dano mais grave. Qualquer coisa de que necessite, só precisa de comunicar. – Terminou a conversa. – Só mais uma coisinha. Como se chama?
- Rita. Rita Neves. – Informei.
Observei o mundo lá fora, com a testa encostada à janela fria. A caminho do hospital. O serviço de saúde estava concentrado no homem de cabelos negros. Não consegui olhar para ele. Só queria ir para casa e dormir, esperando que a mágoa se esvaísse e o mundo se tornasse perfeito com um clique. Queria a minha filha a dormir no meu colo e a paz de volta. Queria um banho quente e livrar-me de toda a miséria. Talvez me desse ao luxo de passar horas no banho a curar as feridas que o mundo me causou. Estava faminta de carinho e de um colo onde chorar. Olhando pela janela, pouco se via. Imensas gotas de chuva por todo o lado, e o meu reflexo no vidro. Preferia não ter visto como estava destruída. Cheia de olheiras e com os olhos vermelhos. Despenteada e encharcada. Enrolada numa manta que não me aquecia o frio gelado da perda. Três pessoas na viatura e eu sentia-me tão sozinha. Talvez quando chegasse a casa preparasse um café quente e me conformasse com as dificuldades por que tinha passado.
Contrariando a minha vontade, olhei o homem na maca. Estava mais calmo e tinha um penso enorme a tapar-lhe o corte. Mantinha os olhos fechados e parecia dormir. Já não gemia de dor, nem suava de sofrimento. Lá fora, fez-se ouvir uma rajada de vento mais forte, mas não me tirou a concentração. Ele era bonito. Mesmo descabelado, pálido e ferido, parecia um modelo. Quis abraçá-lo e pedir-lhe perdão vezes sem conta. Talvez o destino não fosse mau de todo. Afinal, estávamos vivos.
- Daniel Mota. Vinte e oito anos. Órfão de pai e mãe. – Uma lágrima escorreu pela minha face. Éramos iguais. Quis conhecê-lo e cuidar dele para sempre. De repente, sempre não parecia muito tempo.