A Sombra do Desespero - Capítulo 1 (P. 1)
Olá, caros leitores!
Estou a escrever um livro. Vai chamar-se "A Sombra do Desespero". Com a ajuda da Books Market ( booksmarket.pt ), resolvi divulgar os dois primeiros capítulos aos poucos. Aqui vai a primeira parte do primeiro capítulo, espero que gostem.
A noite estava cerrada. O vento rugia desesperados presságios. Pressentia-se no ar um cheiro amargo a decadência. As árvores moviam-se agitadamente pela cidade, dançando com o vento violento e assustando a gente que por ali passava. No cemitério, a cor era ainda mais negra. Sozinha, uma qualquer alma gritava de dor. Essa alma era eu.
Partida em incontáveis pedaços, esperei uma cura para a perda. Esperei um beijo daquele Deus todo-poderoso, um beijo daquele que supostamente salva todos os bons homens e boas mulheres de todos os males da Terra. Enquanto vi as almas prediletas dos meus pais separarem-se dos seus corpos velhos, todas as minhas crenças se foram. Inevitáveis lágrimas se escaparam dos meus olhos vermelhos e inchados. Num ato de fraqueza, ajoelhei-me tristemente em frente à lápide dos meus pais. Deixei-me chorar, sem que ninguém estivesse ali para ver. Esmurrei a terra suja e senti algumas feridas abrirem-se nos meus punhos quando atingi umas pedras. Rasgos ensanguentados na minha pele macia que ardiam muito menos do que o meu coração. Gritei a dor latejante e ouvi o som agoniante ecoar pelo vazio, sobrepondo-se ao rugido do vento. A tempestade caiu logo depois do berro e a chuva fez-se sentir violenta sobre o meu corpo vulnerável, enquanto eu soluçava.
Elevei os meus olhos, para poder mirar dolorosa e carinhosamente a lápide. Estavam gravadas letras tão negras como o céu daquela noite: “Aqui jaz o casal Maria e Guilherme Neves. Ambos muito amados pelos filhos e família.”. Um mês depois da sua morte, olho, pela primeira vez, esta pedra e desejo destruir a frase frívola que o meu irmão ordenou ser gravada. Eles mereciam mais do que aquilo que eu via ali, à minha frente. Eles mereciam mais do que corpos enterrados em terra fria, mais do que lama sobre as suas lápides friamente gravadas. Mereciam muito mais do que tudo aquilo que tiveram.
Levantei-me pesadamente da terra molhada, olhei com saudades as suas fotografias e parti. À saída do cemitério, fechei os olhos e levantei a face ao céu. Esperei que a água da chuva me lavasse as lágrimas, mas só me trouxe mais desespero e uma louca dor. Entrei encharcada no carro e agarrei-me ao volante, descansando a cabeça no mesmo. Depois de regular a respiração, pus a chave na ignição e segui para casa. O lar a que dei vida era onde eu me sentia melhor. No meu lar, eu podia beijar o meu namorado com carinho e brincar com a minha filha. Também era no meu lar que eu podia abstrair-me deste tipo de dor. A verdade é que grande parte da minha tristeza partia quando eu via o sorriso enorme da Sara.
Lisboa era uma grande cidade. Foi ao partir do Cemitério dos Olivais e seguir pela A36, que notei as imensas luzes que brilhavam por todo o horizonte. Ao percorrer a autoestrada, perdi-me nas minhas recordações. Lembrei todos os pormenores do caminho que havia percorrido quatro anos antes. Haviam já passado quatro anos, desde que levei os meus pais a visitar a minha casa. Foi um momento esperado, aquele em que orgulhosamente exibi aos meus pais o que eu tinha construído depois da faculdade. O caminho foi feito cheio de piadas e ainda mais gargalhadas. Agora, já não havia mais nada. Quando dei por mim estava a chorar. Outra vez. Lágrimas quentes e soluços silenciosos. Procurei lenços para me poder limpar. Já pouco via com todo aquele negrume da noite, e a minha visão ficava ainda mais distorcida com a chuva de lágrimas presa aos meus olhos.
Foi um instante. Um instante em que o meu corpo ficou rígido e o tempo correu à velocidade da luz, sem que eu me pudesse mexer para o evitar. Foi um instante em que toda a minha vida ficou dispersa numa fina linha de probabilidades. Foi um instante, apenas um mero instante em que o volante deixou de me pertencer e os pedais deixaram de ceder. Foi um instante de escassos segundos em que toda a minha respiração bloqueou e o acidente se fez. Nesse mero instante, a minha vida mudou completamente. Só me recordo de um imenso choque em que tudo voou e de um imenso voo em que tudo partiu. Carros quebrados, vidros em estilhaços infindáveis, peles rasgadas e vidas que podiam ter fim ali mesmo. Tudo porque chorei a morte dos meus pais. Tudo porque tentei alcançar um pacote de lenços. A morte não está no acidente, está no instante que se fez quando tentei alcançar um pacote de lenços. E o instante fez-se.
Demorei algum tempo a recuperar a consciência. Passou-me pela cabeça que eu podia estar morta, ou quase morta. Atrasou-se a minha perceção dos acontecimentos. Inicialmente, não soube o que tinha acontecido. Abri os olhos a custo. Doíam-me as pálpebras, a cabeça e as pernas. Senti alguma dor a respirar, e parecia ter o peito pisado. Quando os meus olhos focaram a imagem à minha frente, entrei em pânico. Mesmo diante de mim, o capô do meu carro esmagado e os vidros por toda a parte, mas não foi isso que me chocou. O que despertou em mim o choque foi o carro, metros adiante, em que eu bati por ser tão inconsequente. O pânico parou as minhas lágrimas. Engoli em seco. Por todo o caminho só se notavam os fragmentos do acidente e as consequências da minha negligência. Senti-me a pessoa mais imprudente do mundo. O cenário parecia um filme de ação em que a perseguição de carros tinha corrido mal.
Sem deixar de olhar para diante de mim, pousei a minha mão na porta e abri-a devagar. Custou-me a acreditar. Obriguei o meu corpo a erguer-se e caminhei dolorosamente, lutando contra as dores que me ameaçavam os músculos. Chovia imenso e mal se via o horizonte, mas eu pude ver os destroços todos. Encharcada e impávida, fiquei ali a observar. Fiquei hirta ao perceber a gravidade da situação. O destino não podia ter guardado algo desta dimensão para mim. O meu coração ficou apertado e tudo parou. Se, depois da morte dos meus pais, algo se tinha erguido, então esse algo havia caído de novo. Levei a mão à cabeça e esforcei-me por acreditar que era uma ilusão. Disse para mim própria que era mentira. No entanto, era inútil tentar apagar os factos. Na vanguarda, um veículo totalmente destruído. Já quase sem vidros, esmagado e deformado. A retaguarda do carro estava miseravelmente arruinada. Haviam dois pneus furados e um que tinha saltado. As portas estavam estranhamente amolgadas e pareciam impossíveis de reparar. Pedaços de provas do acidente rodoviário pela autoestrada fora fizeram-me pensar que o carro, no qual bati, rodou em círculos. Aniquilei a viatura e provavelmente matei o proprietário.