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O Comboio - Sequela

O comboio anda para a frente. Ainda assim, e mais uma vez, não consigo amar esta viagem. Estou novamente a ser afastada de ti. Levada para longe como uma mercadoria qualquer. Uma mercadoria pesada e cheia. Pensando bem, trago alguma mercadoria em mim. E é toda feita de memórias que partilho contigo. Seria impossível esquecer. Permito-me recordar-nos. Reavivar as memórias, que partilhamos sempre, é a forma perfeita de te ter ao meu lado, mesmo que não estejas. A carruagem está tão vazia e o meu coração está tão só. Estou tão partida por dentro, meu amor.

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Nunca estarei preparada para me afastar de ti. Lembro-me e tremo de emoção. Seguraste-me a cintura para me ajudar a entrar no transporte e foi assim – com os meus pés dentro do comboio e os teus pés fora do comboio – que nos beijámos pela última vez. Os meus cabelos caíram, emolduraram-nos e esconderam o nosso beijo do resto do mundo, enquanto o meu corpo se inclinava para ti e as minhas mãos se agarravam à porta de embarque. Sussurraste-me que eu tinha que ir e eu soube, pelos teus olhos brilhantes, que querias pedir-me para ficar. E eu estava pronta para ficar, mas o comboio estava pronto para partir. O destino parece sempre tão cruel quando sou obrigada a deixar-te. Contra a vontade do meu coração. Um órgão real ou imaginário que se rasga em dois para deixar uma parte contigo. Sempre terás nas mãos uma parte do meu coração. Só não to deixo todo porque preciso dele para sobreviver.

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O vidro da janela do comboio está embaciado. No meio de toda essa névoa que desfoca a paisagem está marcado o lugar onde as nossas mãos se uniram. Lembro-me como se tivesse sido há treze minutos atrás. E foi. Sentei-me no lugar 95 da carruagem 23. Faltava um minuto para que o comboio começasse a arrastar-se pela linha fora. Tentámos sorrir mas só conseguimos chorar. Nunca parámos de tentar sorrir. Sempre soubemos o quanto um sorriso, mesmo que seja fraco, ameniza a dor de ambos. Levantei a mão colando-a ao vidro da janela já embaciada e tu colaste a tua ao mesmo lugar. Separados apenas por uma janela que não se abre sussurrámos um amo-te. Essa imagem de nós é sempre tão difícil. E, então, o comboio apitou. As portas fecharam-se. E começámos a afastar-nos. Comecei a partir. Nunca um minuto passou tão depressa.

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Na minha mão tenho a carta que me escreveste. Juntei cada pedaço de mim para tentar cumprir o teu pedido e não a abrir logo. É por isso que só agora acabei de a ler. O papel está manchado com algumas das minhas lágrimas. Desculpa. Esmago a carta contra o coração e agradeço-te mentalmente, esperando que a mensagem te chegue eventualmente. Cada uma das palavras que me dedicaste hoje foi certa. Desejo mais cartas como esta para amenizar as saudades. E desejo mais ainda um beijo teu para eliminar qualquer réstia de dor que eu possa sentir. As pálpebras doem-me de tanto chorar. Soluço e não afasto a carta do meu peito. Quero as tuas palavras perto do meu coração. O papel está enrugado de tudo aquilo por que já passou. E também eu me sinto assim: enrugada de tudo aquilo por que já passei.

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“Nem pareces real” Disseste-me, mesmo antes de me largares. Observo o meu reflexo através da marca das nossas mãos e recordo a honestidade dessa frase na tua voz. É quase mágica, a forma como pertencemos um ao outro. Quis dizer-te que sou tua, mas tu sabes isso. E naquele momento nada do que eu dissesse faria sentido, por isso calei-me. Agora, estou devastada. Imagino-te a entrar no teu quarto e a perceber o eco que o vazio deixou. Sei que a escuridão vai voltar e é inevitável, mas espero que sorrias com o balão que eu deixei preso à tua gaveta e que te lembres de mim a passear em cada canto dessa casa. Porque a verdade é que eu deixei um pedaço de mim em cada canto de ti. São esses pormenores que fazem de nós aquilo que somos.

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Tal como eu fiz notar no início, desta vez o comboio anda para a frente. Talvez seja um bom presságio, talvez signifique que vamos reencontrar-nos em breve. E vamos. Eu sei que vamos. Mas, nem por um momento, o facto de o comboio estar a andar para a frente, no meu caminho para longe de ti, fez a viagem ser melhor ou menos dolorosa do que a última viagem que fiz. Muito pelo contrário, aliás. Dói como sempre e esmaga-me como nunca.

 

Uma viagem de comboio é o que nos separa. Sabes como adoro viajar. Mas nunca para longe de ti.

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Lara Filipa xX

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