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Sobre Ser (Perfeita)

E lá estava ela. Lindíssima.

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Vestia uma t-shirt preta e justa com uma saia também preta, comprida e com um rasgo na lateral direita. Não ostentava aquelas roupas, murava-se com elas. Os seus cabelos esvoaçavam num corte curto e desatualizado em redor da sua cara rechonchuda. Segurou o telemóvel com firmeza e fechou os olhos com força antes de atender, como que procurando em si a força para enfrentar algo que me escapava. Atendeu.

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Levantou-se desengonçada. O telemóvel seguro contra a sua pequena orelha. Observei o seu corpo, da mesma forma que as mulheres se analisam umas às outras. Era gorda. Não parecia confiante. Tinha um semblante gasto, triste até. Banhas desagradáveis saltavam à vista da sua roupa colada ao corpo – a roupa que se recusava a tirar na praia, mesmo sob o calor abrasador de um dia como hoje. Puxou a camisola das dobras da barriga e via-se o suor que absorveu enquanto esteve sentada. Desligou a chamada. Olhou o mar. A sua expressão não era simpática. Os lábios caiam retos entre as suas bochechas cheias. Baixou a cabeça, salientando o papo abaixo do queixo. Os olhos brilhavam, parecia mesmo que ia chorar. Reunindo controlo sobre si, pegou no pesado saco de plástico que trazia. Caminhou, então, com lentidão e peso. Foi aí que vi a sua perna bamboleante e brilhante de suor escapar pelo rasgo lateral direito da saia que a murava. Uma brecha aparentemente inocente para o seu mundo de celulite e gordura. Um mundo que se esforçava claramente por tapar – de olhos como os teus.

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Os olhos. Os que regurgitam crítica agora mesmo enquanto imaginas esta descrição. Mente conspurcada com aquilo que tu esperas de nós, mulheres, com aquilo que nós esperamos de nós, mulheres, e com o que talvez tu esperas de ti. Porcas nódoas mentais de uma sociedade que vomita convenções desumanas. E o que era esta mulher, quem era esta mulher, além de apenas humana? H U M A N A. Cheia de defeitos e detalhes que a sociedade nos ensinou a ver como horrendos, mas parte de algo que é apenas… humano.

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Contra tudo o que sei, contra tudo o que fui ensinada a saber, contra o mundo olhei-a e a única coisa que consegui pensar foi “que mulher lindíssima”. Não era apenas linda, era a mulher mais bonita naquela praia. Mais bonita do que eu, que me esforço por corresponder ao que a sociedade espera de mim: ser magra, ser limpa, ser simpática, ser bonita… ser… p-e-r-f-e-i-t-a. Desculpa. Ser P-E-R-F-E-I-T-A. Ou ainda PERFEITA. Errei. E não é errar humano? Não é a celulite humana? Sinais, sardas, manchas, gordura, ranho, suor, nervos, frustração, tristeza, imperfeição – não é tudo isso apenas humano? Como ser perfeito?

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Eu falo alto e danço mal. Não sei política ou desporto e tenho um péssimo sentido de orientação. Eu espirro, eu tusso, eu adoeço, eu sofro. Eu arroto e peido. Eu cago e mijo. Às vezes até tenho diarreia, vómitos e infeções urinárias. Eu fodo e nem sempre me venho. Eu tenho celulite em pé. E pesadelos deitada. Estrias e derrames desde os 16 anos. Já tive piolhos e covid. O meu corpo dobra sobre ele e sobre mim e sobre este texto. A minha cabeça é confusa. O meu coração tem depressão. E a morte existe em mim desde sempre e para sempre. Todas estas coisas são coisas que fui ensinada a odiar em mim. Mais do que ter vergonha de tudo isto, tenho vergonha de ter vergonha. E quero libertar-me disso. Libertar-me daquilo que tu achas que é perfeito em mim e noutras como eu. Libertar-me da crítica e da pressão que pesa em mim. Em nós. E se isso não for possível em mim hoje… Talvez seja possível em alguém amanhã.

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Ela era a mulher mais bonita da praia. Ninguém pode dizer-me o contrário. Ela também tem vergonha. E estou certa de que, como todas nós, tem vergonha de ter vergonha. No entanto, ela é lindíssima. Talvez seja porque tudo nela encaixa com quem ela é. E não é isso aquilo a que todos devemos aspirar?

 

Hoje… Quero ser… E só quero ser… P , E * r – f . E + I ~ t ; ª.

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Lara Filipa xX

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