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Sentir Como Um Cego

Caminhei pelo escuro. Não estendi os braços. Não tentei ver. Tentei perceber, sem olhar. Tentei sentir, sem tocar. O ar cheirava a mofo. Tentei imaginar as velharias todas que me rodeavam. Ri-me. O som ecoou. Eu pensei em como podia estar a caminhar para o abismo ou para o paraíso. E tudo isto sem saber o que quer que seja. Deixei que o meu corpo se perdesse na escuridão. Continuei a caminhar. Caminhei com a alma. Passo a passo. Pé ante pé.

 

Queria saber como se sente um cego. Eu só queria saber como se sente um cego.

 

Durante o desespero, as pessoas fecham os olhos com muita força. Fecham os olhos para se poderem ausentar da cruel realidade por um segundo apenas. Ausentam-se para atingir a calma. Imaginam águas paradas, lugares paradisíacos. Ausentam-se mentalmente porque com os olhos fechados a mente só vai onde queremos que ela vá. E nada mais. Imaginem os privilégios de um cego. De olhos fechados, podemos ser e ter o que quisermos. Chama-se sonhar. E eu queria saber: porquê fechar os olhos por um segundo apenas quando se pode ter a vida inteira no escuro?

 

Fechar os olhos é o suficiente para se poder fingir ser o que quer que seja. Assim, no escuro, posso ser aquilo que eu desejar e ninguém saberá as perversidades que me passam pela mente. Posso ser um gato ou um coelho. Posso ser feliz. É isso que quero. Quero ser feliz. Quero ser cega e poder imaginar um mundo com mais cores do que aquelas que existem. Quero imaginar que vivo num mundo com mais felicidade do que aquela que posso alcançar. Quero viver. Os cegos não podem ser assim tão infelizes, certo?

 

Se eu fosse cega, o sofrimento que vive no meu coração não seria tão grande e impossível de suportar. Se eu fosse cega, as minhas emoções estariam à flor-da-pele. Se eu fosse cega as minhas emoções seriam tão fortes que eu acabaria por ver o meu sofrimento quase apagado pela velocidade avassaladora das coisas a processar. Nem haveria tempo para pensar na dor, pois teria que me concentrar no lugar onde estou a pôr os pés. Se eu fosse cega, não conseguiria ver as imagens horríveis que passam na televisão e não conseguiria lembrar-me do rosto de todas as pessoas que eu já perdi e, consequentemente, não seria assombrada pelas suas figuras. Se eu fosse cega, o mundo seria mais fácil e seria como eu quisesse que fosse. Seria um mundo cheio de liberdade, flores e cascatas. Eu podia aguentar uma vida assim, como cega.

 

Sempre que o sofrimento me consome, eu acabo aqui, neste sótão escuro, a desejar ser cega. Dizem-me que poder observar o mundo é um dos melhores prazeres da vida, mas se eu ficar presa num lugar sujo e feio nunca verei para além disto. O verdadeiro prazer é poder imaginar de olhos fechados. Por isso, desejo ser cega. Desejo ser cega quando vejo um animal morto à beira da estrada. Desejo ser cega quando a vida é cruel demais para manter os olhos abertos. Desejo ser cega quando as pessoas me olham com reprovação ou quando não me sorriem na rua. Desejo ser cega quando vejo os meus pais chorar. Desejo ser cega quando o mundo fica escuro. Desejo ser cega quando o sol é demasiado intenso ou quando a chuva me deixa a visão turva. Se eu fosse cega o mundo seria melhor.

 

A porta abre-se com um chiar imenso. A luz traz-me de volta à realidade. Vejo no chão o candelabro ferrugento que apaguei ao entrar. Ainda oiço o som que fez quando caiu. O candelabro caiu. Levanto o olhar e ali está a minha mãe, a observar-me no meu pior. As mães apanham-nos sempre no pior.

 

Arrastei-me para a cama. Arrastei-me para a cama e nunca lhe contei que, às vezes, só queria saber como se sente um cego. Nunca lhe contei a história sobre a menina que sangrava por não se encaixar num universo tão desumano. Nunca lhe contei que essa menina estava cheia de cicatrizes por baixo da pele. Nunca lhe contei a dor permanente que cada memória visual acabou por causar. Nunca lhe contei sobre os dedos que eram demasiados para se poderem contar, pois mais vale sentir. Nunca lhe contei que a menina da história estava a sofrer. Nunca lhe contei que eu estava a sofrer. Nunca o faria.

 

Enterrei a cara na almofada. A vida é um pesadelo constante e eu nem podia ser cega para tentar imaginar o paraíso no meio do inferno. Chorei muito. Em silêncio e sozinha. Chorei e sonhei. Sonhar mantinha-me viva. Sempre me manteve viva. Os sonhos são o alimento da alma. E todos fechamos os olhos quando beijamos alguém. Alimentamo-nos desse momento, com os olhos fechados. Como num sonho.

 

Agora, aqui estou. Já se passaram muitos anos desde a primeira noite em que eu desejei cegar. Ainda recordo a intensidade desse desejo porque ainda o tenho em mim. E ainda sei de cor os passos que dei naquele velho sótão fechado. O sótão era o lugar mais escuro da casa e onde eu me sentia mais protegida. A verdade é que o desejo de cegar não apareceu do nada. A dor não é como a fénix, não nasce das cinzas. Eu queria ser cega apenas porque a vida tinha sido muito impiedosa comigo e eu já vi muitas coisas que não queria ver. Não acontece o mesmo contigo?

 

A vida pisou-me sem pedir permissão e deixou-me sozinha a lidar com as consequências de um coração partido. O mundo é cruel. Depois, com o tempo, fiquei muda, insensível, dormente, surda. Destruída até. Mas nunca cega.

 

Ainda dói. Ainda me dói. Sabias?

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Lara Filipa xX

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