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O Último Abraço

Eu estava ao lado dele. Os dois sentados no chão, com os joelhos encostados ao peito e os braços a rodear as pernas. Lembro-me de como soltámos tantas e tão boas gargalhadas nesse dia. Para mim, eram esses momentos os que contavam mais. Aqueles em que ríamos juntos. Comecei a chorar de tanto rir e, no fim, parámos os dois de rir, quase ao mesmo tempo. Suspirámos, ofegantes. Sabia bem, estar assim. Ao lado de um bom amigo. A rir sem saber muito bem porquê.

Olhámos o céu e ficámos assim por bastante tempo. Quando a amizade é perfeita, o silêncio diz o bastante sobre ambos e passamos a conhecer-nos apenas o suficiente para sabermos que é real. Foi real. Foi uma boa amizade. Ali, naquele instante. E em todos os outros. Não consigo duvidar disso.

- O universo é tão fodido. – Disse ele. Eu olhei o céu e, ao ouvir aquelas palavras, foi como se ele mudasse de cor. Foi como se tudo ficasse mais claro.

- É mesmo. – Fui breve e ele entendeu.

Fechei os olhos. O mundo é mais feliz dentro da minha cabeça. Ou, pelo menos, foi isso que pensei. Mal eu sabia que o mundo só podia ser mais feliz se houvessem mais pessoas como ele. Genuínas e queridas. De repente, sem que eu percebesse porquê, ele abraçou-me. Existiu um carinho naquele abraço que quase o fez soar como uma despedida. Tive medo daquele abraço, mas ao mesmo tempo senti um conforto tão raro. E depois a campainha tocou e ele foi-se embora com um sorriso. Ele ia-se sempre embora com um sorriso.

 

(…)

- Deixa-me ouvir-te tocar piano.

- Está bem.

 

Sentei-me num sofá a seis passos do grande piano no centro da sala. Fiquei ali, embrulhada num velho cobertor cinzento, enquanto ele tocava. Arrepiei-me com o toque suave da primeira tecla. O eco que fez naquela sala vazia de tantas coisas essenciais à vida. A melodia era tão triste e bela que o meu corpo paralisou. Os dedos dele a pressionar as teclas brancas do piano negro. Pressionava-as apenas o bastante para criar som. Leve. Ele tinha os olhos fechados e, por um instante, nem eu parecia existir para qualquer um de nós. A dor daquela música era toda dele, mas ambos a sentimos. Para ele, calmaria. Para mim, tempestade. E sempre fomos tão iguais.

 

Naquele sofá, o mundo não era meu. Rodava tudo em volta dele. E na minha cabeça, ficou apenas o eco da mais bela canção. Quando o toque dos seus dedos ficou mais lento, eu soube que era o fim. Eu soube que estava a acabar. Era como uma despedida. Era como uma lenta e dolorosa despedida. Um aviso, talvez. O fim de alguém tão belo. Alguém tão incrível que nunca encaixou neste mundo. E eu soube sempre. Aí, residiu o meu maior arrependimento. Eu soube e calei-me. Fiquei com tanto medo que neguei ao invés de fazer alguma coisa para retirar o meu amigo de toda aquela miséria.

 

Então, ele abriu os olhos brilhantes. Tão vivos. E a sua alma morreu ali, diante de mim. Depois, ele levantou-se. Abraçou-me uma vez mais, com aquele carinho. E partiu.

 

Foi a última vez que eu o ouvi tocar. Foi a última vez que o abracei.

 

(…)

 

Deitada sobre um banco branco, no meio da rua, observo. Olho, agora, o mesmo céu. Aquele que, um dia, ambos observámos. Aquele diante do qual, um dia, ambos rimos. Diante do qual, um dia, ambos fomos. E jamais fomos depois disso.

Uma palavra minha poderia ter sido o suficiente. Não consigo convencer-me do contrário. Talvez tivesse sido o suficiente para te convencer a ficar. Uma palavra apenas. Eu sei que nunca te soubeste moldar a este mundo. Não te culpo a ti, culpo o mundo. As pessoas são cruéis e mesquinhas. Tu não eras assim. Eras o meu amigo. O meu ídolo. Quem me dera que as pessoas soubessem o quão forte foste por teres enfrentado tanto daquilo que te foi atirado à cara. “O universo é tão fodido.”. E é. Preferia que houvesse um universo paralelo. Tu dizias isso também. Algo paralelo à realidade seria mais fácil de aceitar. Depois da tua morte, qualquer coisa seria mais fácil de aceitar do que isto. A perda. A ausência do meu amigo para ver o céu e as estrelas. Para ler poesia e discutir literatura. Para rir e inventar. Rir e inventar era o nosso passatempo preferido.

 

“Desculpa-me, meu querido amigo.” Digo baixinho. Fecho os olhos. Choro. E peço por tudo que me desculpes.

 

Desculpa-me por, no fundo, ter sabido sempre que cada abraço teu era uma despedida.

 

Desculpa-me por, no fundo, ter sabido sempre que cada canção tua era uma nota de suicídio.

 

E por, mesmo assim, nunca ter feito nada para te salvar.

 

Talvez a culpa seja realmente minha.

 

Por tudo isso. E mais.

Lara Filipa xX

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