O Reconhecimento
Olho pela janela do autocarro. Daqui, vê-se o mundo inteiro. Acho que, qualquer que seja a janela através da qual os meus olhos vejam, a vista é sempre o mundo inteiro. Vejo casas, rios, árvores, empresas. Mas vejo ainda mais. Vejo vida. Vida no movimento, no tempo que passa, nas pessoas que correm e nos ventos que assobiam em pequenas frestas. A chuva, o frio. Uma dinâmica incrível enquanto o tempo passa e as almas correm ao meu redor. Vê-se o mundo inteiro a mexer, e eu quieta. A ver passar tudo e qualquer coisa, a cada segundo com uma paisagem diferente. O céu está aberto e o anoitecer lá continua, no ciclo vicioso de sempre.
Fico no meu canto, deixando-me ficar e apenas olhando. Com as pernas cruzadas, um lápis na mão e um caderno cheio de apontamentos de uma vida de sonho. Sou nova e turbulenta, e viva. E, agora que o autocarro parou num semáforo bem encarnado, do outro lado da rua posso ver algo. Posso admirar alguém, que nunca antes admirei da forma que agora admiro. Do outro lado da rua, também num autocarro, está uma senhora. Por momentos, a minha respiração para. O barulho evapora e há apenas um universo em frente. Quase sinto que o meu próprio reflexo. Mas no futuro, um futuro longínquo mas tão perto.
Já idosa, com as rugas a contarem histórias que nenhuma plástica contaria melhor. Há quem não acredite, mas o tempo criou as rugas, como expressão eterna de cada experiência, e essas rugas contam tantos contos quantos aqueles que aquela senhora já viveu. E, com toda a certeza, encontro nestas marcas um certo encanto. Uma doçura inexplicável do corpo e da sabedoria. Decoro-lhe claramente os cantos de uma boca fina e rosada que, apesar de cansada, ainda sorri. Decoro-lhe os olhos negros, brilhantes e vivos. Os cabelos brancos penteados em largos caracóis vaidosos que respiram com o vento. As mãos que nunca mentem, deitadas sobre um colo farto. É bela, esta imagem.
O autocarro recomeça a viagem e abro novamente a vista ao céu. O horizonte em nuvens escreve um pensamento doce e uma previsão profunda que, sem saber como, já sei como certa. Aquela senhora, separada de mim por uma estrada e duas janelas, disse-me algo em que nunca tive a coragem de pensar. Algo que nunca ninguém teve a coragem de me contar. Envelhecer é magia, e não solidão. Envelhecer é saber e viver e paixão. É o saber da experiência repetida numa história bonita contada com olhos belos. Envelhecer é deixar que o tempo passe, cedendo o corpo e a santidade. Ser humano é ser pecado e ser velho é aceitar a não perfeição. Envelhecer é deixar acontecer, sem mais. Sem menos.
Os olhos de que falo, pareceram olhar-me de volta. Ambas envoltas num escuro muito mais negro do que a noite. Houve uma empatia, tão enorme como um ser pleno, na maneira como os olhares se cruzaram e se admiraram. As histórias que contamos sem partilhar sequer uma palavra. Histórias são melhor contadas assim: em silêncio. Fala-se com os olhos, afinal. Aquela senhora soava a uma essência como a minha. Uma essência que procura incessantemente um descobrir novo através da janela. Ela olhava pela janela sempre em busca de uma novidade qualquer, num canto qualquer, de todo um mundo. Uma mulher bela e desconhecida hoje vi, e mesmo fechando os olhos ainda a recordo, e vejo e sei de cor. Não sei bem o que aconteceu, ou talvez saiba. Talvez tenha sido apenas, como Pessoa diria, "uma imprecisa coisa feliz".
Só ficou uma questão por responder naquela fração de segundos: será que aquela idosa (para mim tão familiar como um espelho) se reviu em mim, da mesma forma que me revi nela?
Lara Filipa xX