O Choque
Nem sei como explicar o que sinto. Este foi um dia esgotante, e sinto-me emocionalmente destruída. Completamente arrasada pela veracidade das coisas que vivi. Muitas vezes, ao longo da nossa vida, vamos ouvindo histórias de pessoas que tiveram ou acompanharam cancro. Mas não é nada como dizem. Podemos tentar imaginar, mas só quando estamos no lugar dessas pessoas podemos compreender. Há desgraças tão grandes na vida, e esta maldita doença é uma delas. Porque é que as pessoas boas também sofrem? Eu tenho tantas perguntas e nenhuma resposta. Só não quero sentir esta dor no meu peito. A impotência, o desalento.
Eu nunca pensei entrar num hospital por estas razões. Mas a verdade é que entrei. As notícias do dia anterior foram péssimas. Eu só repetia para mim própria que isto tudo tinha que ser uma brincadeira de mau gosto. Mas não era. E quando caí em mim, ao ver todo aquele ambiente pesado de choro e preocupação, eu rezei (a um Deus que não acredito) que, por favor, tudo corresse pelo melhor. Todos choravam ou queriam chorar.
Ao longe ouvi a minha mãe chamar. Ela tinha-me dito o estado em que ele estava: amarelo, com tubos a entrar pelo cobertor a dentro, magro, olhos meio abertos, um tubo na boca para respirar, entre outras coisas a que não prestei atenção. Ela podia ter-me dado uma visão pior das coisas, porque eu tentei sempre imaginar a situação da forma mais realista. Mas, nunca, eu nunca estaria preparada para aquilo que vi. Percorri um longo, triste e silencioso corredor, olhando para dentro de várias salas. Alguns pacientes dormiam de cabeças caídas, uns deitados e outros sentados, todos cheios de tubos e inconscientes. Quando cheguei ao quarto onde estava o meu primo, eu desabei. Até pensei que fosse o quarto errado de tão irreconhecível que ele estava. Continuei a andar (não sei como), para chegar perto dele. Eu tremia, havia uma bola na minha garganta e cerrei o maxilar para não chorar. O meu mundo caiu. Flashbacks de momentos felizes e risonhos que tive com ele passaram-me pela cabeça e agora, estávamos ali, somente nós, sem risos nem sorrisos. Imaginei tudo de tantas formas, mas nada assim tão mau. A realidade atingia-me como uma flecha: o meu primo tem um tumor em constante alastramento. Senti um desalento, um pesar. Ele já era magro, mas agora estava ossudo. A sua pele era de um amarelo-torrado e doente, horrível. O que mais me meteu impressão foram os olhos porque, enquanto os meus raiavam sangue, os dele estavam entreabertos e amarelos como a sua pele. Olhos vidrados e inconscientes como alguém que não queria ver, quase cego de sofrimento. O coma induzido obrigava-o a ter um grosso tubo que lhe entrava pela garganta a dentro e não parecia ter fim. Os cabelos quase brancos. Apesar do frio, o quarto estava quente, e ele estava apenas coberto de um fino tecido de hospital e uma manta. Não importa o quanto eu tente descrever, ninguém poderá alguma vez imaginar. A cor devia-se à infeção no fígado. A cabeça dele caía para trás como quem espera um beijo divino de cura perpétua. Ninguém poderia, mesmo que tentasse arduamente, prevenir-me para aquela visão. Ele estava lastimável, era verdade. Mas eu não o amei menos por isso, muito pelo contrário. Eu queria abraçá-lo, aconchegá-lo para sempre. Queria dizer-lhe que acordasse rápido porque sinto a falta dele. E quando ele acordasse não se lembraria de nada do que eu lhe diria daí em diante, devido à medicação forte, mas ainda assim, eu falei.
“Há um homem, chamado Woody Allen.” Disse-lhe penteando os seus cabelos fracos, e deixei derramar as primeiras lágrimas ao seu lado. “Ele diz que, para sermos felizes, devemos todos os dias contar uma pequena mentira para nós mesmos.” Eu desejava ardentemente que ele me estivesse a ouvir. Funguei, continuando a derramar algumas lágrimas e molhando o fino tecido que o cobria. “E eu, todos os dias, conto a pequena mentira para mim mesma, de que tu vais superar isto e vais melhorar para saíres daqui rápido. E, eu sei, que, um dia, essa mentira se tornará verdade. A nossa verdade.” Continuei a mexer-lhe no cabelo, pedindo mentalmente que nunca desistisse. Tive uma súbita saudade da sua voz e desejei que me respondesse, não que eu precisasse de resposta porque vim para lhe dizer que o adorava, eu apenas tinha saudades dele. Dele sem doença e alegre. O seu cheiro entrou-me pelas narinas e eu conservei-o com saudades na memória. E saí.
Saí dali a tremer de tanto que me apetecia chorar e desmanchar-me em soluços ali mesmo. Nunca esqueceria aquela visão. E mal passei a porta, não me contive mais. Foi uma enorme descarga de tensão em lágrimas. Lágrimas que não pareciam ter fim, tal como o tubo que ele tinha na garganta. Senti que não conseguia parar, que podia derramar as minhas lágrimas sobre o Atlântico, como se os meus olhos fossem as nuvens tristes de onde caía a chuva, e os meus pensamentos fossem a trovoada. Eu tinha que ser forte. Por todas as pessoas que ali estavam, de rastos. Mas tive um deslize. Apenas custou tanto vê-lo assim. E eu, impotente e inútil, que não podia ajudar em nada. Pairava uma constante mágoa silenciosa entre os seus amigos e parentes, provavelmente todos se sentiam como eu. Uma dor tóxica e negra no meu peito disse-me que tudo aquilo era verdade. Ouvi dizerem ao longe que ele voltaria para o IPO assim que a infeção tivesse desaparecido, mas eu não quis palavras. Eu queria vê-lo bem, com um rosado leve nas suas faces pálidas e um sorriso no rosto. E queria um abraço bem forte também, mas não um abraço qualquer, apenas o dele. Porque era o abraço dele que me iria dizer que estava tudo bem. Eu supliquei na minha cabeça que isto fosse um pesadelo que teria fim com o abrir dos meus olhos, mas a dor daquela imagem, deu-me um soco na memória e percebi tudo era inevitável. "Por favor, acorda." Pensei. Era doloroso. É doloroso.
A última vez que o vi ele estava bem, com as piadas de sempre, a rir e, apesar das dores e dos olhos vidrados, a interação social era fácil. Dessa vez, ele estava numa cadeira de rodas com trinta pessoas à volta dele, bem e razoavelmente saudável. Ninguém poderia imaginar o que estava para vir. Agora, ele simplesmente jaz naquela cama, corroído pela doença. Maldita doença. Ele luta pela vida, mas eu não quero sabê-lo a ser domado por algo que ele próprio não controla.
Eu definitivamente tinha acabado de ter um grande choque. Mas eu precisava de o ver, precisava de falar para ele, de o sentir por perto. Não importa quantas vezes digam que eu não o deveria ter visto assim, eu repetiria cada passo novamente. Sem arrependimentos. Eu estava tão preocupada. E não havia alívio possível naquele momento. Eu percebi, nesse instante, que a vida não é justa. Compreendi que não importa o quão boa uma pessoa é, ela nunca se livra do sofrimento. Mas de uma coisa eu estou certa, a vida dele é tão radiante, e isto não pode acabar assim, tão desumanamente numa qualquer guerra de medicina. Porque se acabar, eu acho que nunca mais acreditarei em anjos ou milagres, e muito menos em curas. Saí finalmente do hospital a sentir-me como nunca me senti antes: inundada em crueldade e injustiça. A minha mãe está a chorar no carro. Será que a vida é só isto? Não, recuso-me a pensar que é só isto. Ele vai melhorar. Ele tem que melhorar. Até porque quero voltar a ver a minha família feliz, e quero eu própria voltar ser feliz. Tal como todos os que estão a sofrer por ele.