Lembro-me De Quando Tu Existias
Eu tento continuar todos os dias. Acho que é isso que todos tentam fazer. Ao meu redor, está um mundo inteiro alheio a tudo o que os rodeia. De repente, olha-me uma pequena menina. Vejo-a claramente. No fundo desta escura rua, está ela. A correr atrás de uma borboleta branca num jardim cheio de paz. Existe na menina uma felicidade maior. A felicidade maior que a inocência e a ignorância acabam por nos fazer sentir quando somos crianças ou jovens e não sabemos o que o futuro nos reserva.
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Quero caminhar até à menina de caracóis, mas não consigo. Ela parece tão pura e feliz. Pergunto-me que tipo de criatura seria eu se me aproximasse dela para lhe dizer que a vida não é tão leve ou tão fácil como ela julga. Não tenho coragem para destruir a sua alma. A vida certamente saberá fazê-lo por mim. A vida sabe sempre como destruir um sonho.
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Ainda me lembro de ser uma menina, sabias pai? Lembro-me tão bem de quando era uma menina inocente. Acho que a vida aconteceu muito depressa para mim. A vida continua a acontecer demasiado rapidamente para que eu a possa acompanhar. Sinto-me a cair cada vez com mais força e lembro-me de quando tu me dizias que “cair faz parte”. E eu sei que faz. Ainda assim, depois de tantas quedas não sei o que resta de mim. Olha para aquela menina, pai. Um dia, talvez muito em breve, ela cairá e não terá tempo para se erguer. A vida nunca para. Nem mesmo para meninas como esta se habituarem à ideia de cair.
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Ainda me lembro de ser uma menina, sabias mãe? Lembro-me tão bem de quando era uma menina ignorante. Acho que a independência chegou num ápice. Não me apercebi das responsabilidades. Não me apercebi de que estava a crescer. Não acho que alguém se tenha apercebido da velocidade com que fui destruída pelos sucessivos empurrões da vida. Ainda me lembro quando tu dizias que a prática levaria à perfeição. E eu continuo a tentar levantar-me, todos os dias. Mas, mãe, observa aquela menina. Quem a vai ajudar a levantar-se quando ela for independente e ainda não estiver preparada para o ser?
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Lembro-me de quando tu, pai, acendias a luz do candeeiro para que eu pudesse adormecer sem medo de voltar a ter um pesadelo. Lembro-me de quando tu, mãe, te sentavas na cadeira ao meu lado para me ajudar a fazer os trabalhos de casa. Ainda me lembro de quando acordávamos todos muito cedo, em pleno verão, para fazer sandes e passar um dia inteiro na praia. A realidade é que, desde então, eu cresci. Claro que nada poderia ser evitado ou adiado. Eu teria de crescer, eventualmente. Acabaria por acontecer mais cedo ou mais tarde. Mesmo assim, peço-vos mais uma vez que olhem para aquela menina.
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Conseguem perceber como, apenas num curto espaço de tempo, eu deixei de ser a pequena menina que ali está? Sim, aquela menina fui eu e já não sou mais. Aquela menina é toda a parte de mim que acabou por se desvanecer com o tempo. A minha inocência, ignorância e felicidade pura acabaram por desaparecer a cada passo que dei, neste mundo cheio da crueldade que percebo ser parte da nossa sociedade. Parte da nossa trágica vida. Hoje, sou uma mulher corrompida e a cada queda há mais um pedaço dessa menina que se perde para sempre. Não quero magoar-vos. Acontece com todas as pessoas. Todos nós somos crianças corrompidas pela vida e pelos pontapés que ela nos dá.
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Hoje, sou uma mulher que é mulher sem nunca ter estado preparada para deixar de ser criança. As quedas continuam e a crueldade também. Claro que pareço independente e forte, mas é isso que todos tentamos parecer – independentes e fortes. Ainda assim, quantos de nós, pessoas e adultos, estivemos realmente preparados para deixarmos de ser crianças? Pai, mãe, vocês lembram-se daquela menina que um dia eu fui? Deixei de ser essa menina em tão pouco tempo. Não estava preparada. Ainda não estou preparada, pai e mãe. Eu ainda preciso que vocês me deem a mão, tal como antes. Hoje e sempre. Até à eternidade.
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Ainda me lembro de ti, menina. A miúda que deixei para trás há tanto tempo.
Lembro-me de quando tu existias… Isto é, lembro-me de quando eu existia.
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Lara Filipa xX