Conto Terrorista
O tempo em França era frio, naquele negro dia. Ou negra noite. O apartamento onde Sophie vivia era uma bela construção com uma decoração interior moderna que ela e Louis haviam comprado juntos fazia uns meses. Eles viviam agora na Rue de Malte 39 e viviam felizes. Em paz. Estavam casados há semanas, namoraram anos. Mal sabiam o que estava para vir.
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Sophie estava a ler no sofá da sala, coberta com uma fina manta. Tinha nas mãos o famoso Código da Vinci. Enquanto se deleitava com a maravilhosa obra, levou a mão ao peito. Sentia o coração apertado, não sabia porquê. Olhou o relógio, eram oito horas da tarde. Nesse momento, Louis saiu do quarto, num traje casual e confortável. Tinha combinado com uns amigos ir ao Bataclan, que ficava a cinco minutos dali. Sophie fechou o livro, levantou-se e dirigiu-se a ele em passos delicados. Ela era baixinha, pelo que Louis foi obrigado a inclinar-se para a beijar.
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- Liga-me quando lá chegares.
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- Sim, eu ligo. - Respondeu Louis, enquanto a mulher lhe ajeitava a gola do casaco.
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- Amo-te. - Sussurrou Sophie, olhando-o nos olhos.
- Eu mais. - Sorriram e ele beijou ao de leve os lábios doces da mulher.
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Louis saiu, fechando a porta atrás de si. Quando Sophie voltou para a sala, deu conta do telemóvel do marido na mesa de centro. Pegou no aparelho e foi até à porta em passos rápidos, sabendo que ele voltaria para o vir buscar. Ao abrir a porta de casa, deu com o marido a subir as escadas do edifício. Devolveu a Louis o telemóvel e ele parou para a beijar uma última vez. Sophie ficou a vê-lo afastar-se, com um sorriso nos lábios e a sensação de que o queria para sempre.
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Ela deitou-se no sofá, cobrindo-se com a manta. Ligou a televisão e apercebeu-se de como estava cansada. Era escritora, uma simples mulher que vivia uma vida pacata a escrever obras que nunca ninguém reconhecia por serem intelectualmente complexas. O marido era professor de matemática, e ela achava que eram opostos atraídos um pelo outro. Completavam-se. E em menos de nada, já tinha adormecido.
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E um estrondo ouviu-se. Sophie acordou sobressaltada, o coração batia à velocidade da luz. O som parecia tão real que ela não sabia se tinha ou não sido um sonho. Olhou para a televisão e viu as notícias. Era dali que tinha vindo o som. Nos arredores de Paris ou, mais exatamente no Estádio de futebol S. Dinis tinha explodido uma bomba. Um ataque terrorista que matara e fizera feridos. O coração de Sophie não deu sinais de abrandar. Parecia que estava a viver um pesadelo.
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Quando olhou para o telemóvel, viu que tinha dormido por horas. Tinha duas chamadas não atendidas e uma mensagem do marido a dizer que já tinha chegado ao Bataclan. Ligou-lhe de volta e quando Louis atendeu ela podia ouvir o barulho de fundo da banda americana Eagles of Death Metal.
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- Louis, tens de vir para casa já! - Disse numa voz audível mas trémula.
- O que se passa?
- Vem para casa, por favor. Houve um ataque terrorista num estádio de futebol, está tudo
louco, Louis. Precisas de vir para casa. Estou com um mau pressentimento.
- Sophie, calma. Já estou a sair daqui. Dá-me 5 minutos. Amo-te Sophie. - Foi a última coisa que Louis lhe disse antes de as armas começarem a disparar por todo o lado. Sophie ouviu os tiros e gritos sem fim. A música cessou. Sem se aperceber já estava a chorar. Caiu de joelhos no chão.
- Louis! - Gritou. Não obteve resposta. - Louis!!! - Gritou outra vez. - Eu amo-te... - Sussurrou ao telemóvel esperando que ele pudesse ouvi-la. Chorou, abraçando os joelhos, enquanto ouvia os tiros e rezava para que os terroristas não levassem a melhor sobre Louis.
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Sophie levantou-se decidida, pegou nas chaves de casa e correu porta fora. Quando chegou ao Bataclan, desejou que tudo fosse o pesadelo que parecia ser ao início. Um homem agarrou-a, tentando afastá-la dali. Sophie não sabia quem era, nem se importava em saber. Não a deixavam chegar perto do bar por nada deste mundo. Tinha sentido todo o dia que algo estava mal, e pensou que podia tê-lo evitado se tivesse pedido ao marido que ficasse em casa com ela. O rosto dela raiava de vermelho sangue, os músculos contraídos expressando a dor e a mágoa. Lágrimas incontáveis lhe caíram dos olhos. Não era justo. Tinham casado havia semanas. Não podia perdê-lo agora. Soltou agoniantes gritos de desespero. Esperneou e tentou esmurrar quem quer que a estivesse a agarrar mas o homem era mais forte. Sophie queria verificar, queria ter a certeza que Louis estava realmente morto. O sentimento de raiva que ela sentia, em segundos se transformou em negação. “Não” Gritava ela, chorando quase sem respirar. Atirou-se ao chão.
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Ouviu alguém com uma voz de choro dizer que tinham morrido dezenas de pessoas naquele atentado. Os terroristas surgiram da Síria e do Iraque (como é costume). E suspeitava-se de que não tinha ficado por ali. O cheiro a morte espalhou-se pelas ruas e Sophie quis voltar ao tempo em que Louis a estava a beijar à porta de casa. Quis parar aquela dor a todo o custo. Arrancaram-no dela sem aviso prévio, mesmo depois de ele ter dito as suas últimas palavras: “Amo-te Sophie”. Bateu com a mão em punho no alcatrão e não se importou com as dores ou feridas que isso lhe causou. Amava-o. Amava-o com tudo o que tinha e agora ele não estava mais ali para pousar as mãos na sua cintura, não estava ali para a beijar e a reconfortar. Não estava ali para dizer que ía ficar tudo bem. E ela chorou por o ter perdido para sempre e toda a eternidade. O sempre e toda a eternidade era o tempo que deviam passar juntos, não separados. Ela gemeu de dor no chão frio, recusando ajuda. Chorou sozinha em frente ao Bataclan. Sophie desejou morrer com ele. Não queria estar num mundo onde Louis não estivesse. A dor aguda e dilacerante no seu peito nunca foi tão grande, nem quando o pai lhe morreu. Julgou que nunca fosse conseguir ultrapassar aquele luto e adormeceu a pensar que estava a morrer de tão grande que era a sua dor.
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Quando acordou, vestida com a roupa do dia anterior e coberta de sujidade, abriu os olhos, confusa. As lágrimas salgadas haviam-lhe secado na cara e o corpo estava dorido e cansado. As memórias do dia anterior assaltaram-lhe a mente como flashes. Estava deitada na cama dela. Não se lembrava de ter ali ido parar. As mãos tinham feridas ensanguentadas e secas. Foi até à casa de banho e reparou nos olhos inchados. Estava tudo tão baralhado na sua memória, então tentou reorganizar as recordações. Notícias. Maus pressentimento. Telemóvel. Música. “Amo-te Sophie”. Tiros. Gritos. Lágrimas. Ataques terroristas. Sophie sorriu em frente do espelho. Foi um horrível pesadelo. Chamou-se tonta, mentalmente e saiu da casa de banho.
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- Louis! Aposto que te vais rir da minha imaginação fértil. Sabes como sempre tive aptidão para sonhos estranhos. - Mas não ouviu vivalma. - Louis? Amor, não é a altura de jogar às escondidas. - Falou para o ar à espera de uma resposta. Dirigiu-se à cozinha a pensar que o marido podia estar a preparar-lhe o pequeno almoço. - Louis? - Mas ele não estava na cozinha. Em pânico, começou a gritar pela casa chamando-o com a voz desesperada. Esperou sempre um “Calma Sophie, estou aqui.”, mas Louis nunca apareceu.
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Segundos depois, a mãe, Christine, abriu a porta. Era uma mulher com os seus quarenta anos, muito vivida. Adorava explorar o mundo e era sempre otimista. Ensinara a sua única filha a não desistir dos seus sonhos e, foi por isso, que Sophie nunca parou de escrever. Mas, ao entrar pela porta de casa, e encontrar a filha sentada no sofá com as mãos pálidas na cabeça, os cotovelos apoiados nos joelhos e a cara inchada, partiu-se-lhe o coração. Soluços ecoavam por toda a casa e Christine correu a abraçar a filha, apertando-a contra o seu peito. Quis chorar com ela, mas sabia que tinha de ser forte pelas duas. A filha aninhou-se no sofá, deitando a cabeça no colo da mãe e humedeceu-lhe as calças em segundos.
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- Eu sei, princesa. Eu sei.
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A verdade é que se sentira da mesma forma quando o marido morreu nas torres gémeas, ainda era Sophie uma criança. Que ninguém duvide de que a dor de perder alguém que amamos é a pior dor que pode existir no mundo. Christine sabia que morreria por ele se pudesse, porque quando teve que correr para longe do tóxico fumo que vinha atrás dela, a sua vontade era voltar para trás e saber como estava Josef e o que dele era feito. Esperou, em negação, durante meses que ele voltasse para casa. Desejou que ele tivesse saído da torre por instantes e sobrevivido. Mas isso não aconteceu. E quando a verdade a atingiu, ela só teve força e aguentou por causa da filha. A menina dos seus olhos. A única parte de Josef que restou para a lembrar que nada morria sem deixar rasto. Trouxe-a para frança e criou-a para que fosse resistente. Só podia esperar que Sophie sobrevivesse a esta maldição e voltasse a sorrir. Christine, com certeza, faria tudo para salvar a filha. Mas era necessário que a filha se quisesse salvar.
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- Treze de novembro de dois mil e quinze. - Disse Sophie entre soluços imparáveis. - Nunca haverei de esquecer esta data. Nunca.
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- Oh minha filha... Claro que nunca a esquecerás.
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- Esta dor nunca irá embora, mãe. Eu sinto que não.
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- Pois não. Mas prometo ajudar-te a lidar com ela.
- Não consigo fazer isso. Amo-o. Amá-lo-ei sempre.
- Sophie, nada é impossível.
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Pararam por segundos, fazendo o minuto de silêncio em honra de Louis. A mãe sussurrou-lhe ao ouvido coisas bonitas e embalou-a no seu colo como fazia quando ela era bebé. Sophie chorou em silêncio durante duas horas. Na última dessas duas horas, nenhuma das duas se atreveu a dizer fosse o que fosse. Sophie imaginou a forma como ele teria morrido. O massacre que lhe tirou a vida. Ela ouviu-o ao telemóvel. Perguntou-se se ele teria ouvido o “amo-te” dela. E depois sussurrou:
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- Espero que não tenha sido doloroso. - Mas ela achava completamente o contrário. O marido tinha sofrido, que disso não hajam dúvidas. Sophie pensou no azar que tinha. Porque entre os 352 feridos, Louis tivera que se incluir nos 129 mortos.
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Esta história é ficção. Mas não duvido de que tenham havido muitas Sophie e muitos Louis em todos estes atentados em França. A verdade é que foi isto que imaginei: famílias destroçadas, pessoas separadas, vidas destruídas, futuros dispersos num sonho. Porque no fim, foi isso que aconteceu. Não foram apenas atentados jiadistas, foram milhares de pessoas com medo e terror, e foram dezenas de mortes, centenas de feridos. A segurança tornou-se uma questão transnacional e ninguém parece estar a unir-se para combater o problema. A falta de união é o maior problema do mundo e está a levar a humanidade a uma autodestruição inevitável.
Lara Filipa xX