As Cinzas
Céus...
Tenho tanto para te contar. Acho que nunca lidei com uma mistura tão enorme de sentimentos. Hoje o dia foi, de facto, cheio de emoção. O amor que espalhaste por este mundo em vida repercute-se naquilo que as pessoas fizeram pela tua alma, neste dia devastador. Meu primo, és eterno. Isso conforta-me muito, sabes? És eterno e tão amado. Lembrado por todos. Tão querido. Este dia foi a grande prova de que a tua alma ronda os nossos corpos. O teu espírito está sempre presente. Foste eternizado, tal como merecias. Com a sintonia do nosso gesto. Um gesto tão belo, mas tão triste.
Não me lembro de ter ido ao Cabo da Roca antes de hoje. No entanto, não interessa se alguma vez lá estive porque, para mim, o meu primeiro passo neste lugar será sempre marcado por este dia. Posso dizer, certamente, que o dia presente foi inesquecível. O tempo prometia chuva, mas fez sol. Todos pegámos em carros ou motas, fazendo filas até ao ponto mais ocidental de Portugal. Amigos e família juntaram-se no dia de hoje para te prestar a homenagem mais memorável. A vista era tão magnifica. A rebentação forte das ondas que se fazia ver no areal de uma praia ao longe. Uma enorme quantidade de motas que se juntou para fazerem rugir uma última vez os motores em tua glória. Mas, hoje, meu primo, houve algo de diferente: a tua mota estava lá. Cantando versos ruidosos tão bonitos que nos fizeram nascer outra vez em lágrimas. Até o vento, do alto marcado pela cruz, parecia cantar-te um adeus.
Eu sei que te foste a saber-te muito amado por todos, mesmo que alguns de nós (como eu) não se tenham expressado nesse sentido. Este dia foi mais leve e calmo porque te senti lá, comigo. Connosco. Sentir-te por perto, mesmo que não te veja, é sempre um motivo para sorrir. "A morte é só não ser visto". Como ninguém te via e todos te queriam tocar, muitos tocaram na mota com esperança de se sentirem mais perto de ti. Honraram a tua alma com o toque no objeto que mais amavas. Mas eu não o fiz. Eu senti que mexer em algo que te era tão querido, era uma invasão a ti mesmo. Então, fiquei quieta. Fechei os olhos. E imaginei-te a abraçar-nos a todos, um por um. Imaginei-te a voltar a montar aquela mota, com um sorriso nos lábios e um olhar doce. Imaginei-te a sussurrar "amo-vos muito" por entre o barulho das motas. E a partir outra vez. Escondido. Gosto de pensar no assunto como um spray de invisibilidade. Puseste-o em ti, mas esqueceste-te que era permanente.
Os que te eram mais próximos foram até ao monumento com a cruz e deitaram um pouco da tua cinza lá. Ninguém se atreveu a interromper, mas todos observaram. Decidiram não a atirar ao mar por medo que o vento levasse tudo em rajadas. Acabámos por descer até à praia da Adraga. A paisagem maravilhosa fez-me ver tudo com outros olhos, os teus olhos. E percebi porque amavas tanto as concentrações de motociclistas aos domingos naquele lugar. Montanhas de um verde vivo, fizeram-me pensar em como seria saudável passear ali aos fins de semana. O meu humor subiu um pouco quando percebi que passaste pelos mesmos lugares que eu, hoje, passei. No fim de contas, percorremos todos juntos os teus passos.
As ondas violentas abrandaram ao pormos os pés tremelicantes na areia. Altas rochas rondavam o lugar. Era um bom sítio para ficares. Era bonito e o mar transpirava paz. O lugar perfeito para seres feliz para sempre. As tuas filhas, felizes na praia por poder entrar em contacto com o pai, decidiram comandar o momento. A Maria não parece fazer ideia do que se passa, mas as crianças são tão inteligentes que talvez ela até pressinta o acontecimento à sua volta. A Carolina parece mais consciente e triste. Um dia, mais tarde, elas gostarão de saber que estiveram presentes. A Carolina, pegou num qualquer ramo perdido e, seguindo as instruções da mamã, fixou na areia a mensagem mais bonita. "Até sempre pai" Escreveu ela. Com calma e com um sorriso, desenhou na areia um coração. Assim que acabou, quase como por magia, uma onda chegou e apagou as palavras do areal. Gostei de pensar que, aquela onda, foste tu a levar contigo a mensagem da tua filha mais velha.
As minhas mãos estavam frias de tão expostas ao vento. E garanto-te, que eu enregelei quando fui apanhada por uma onda que me molhou até às coxas. Os que estavam mais próximos do mar ficaram todos molhados e sujos de areia. A tia disse-me que foste tu, atrevido, a pregar-nos uma partida. Uma partida das tuas. E sabes que mais? Resultou. Fizeste-nos rir a todos, incluindo o meu tio. Já não via o tio sorrir há tanto tempo.
Os teus pais juntaram-se com as tuas filhas e mais algumas pessoas muito próximas para deitarem as tuas cinzas ao mar. A Maria, a medo, pegou em algumas e deitou-as nas ondas pequeninas que se chegaram perto dela, mas com o vento algumas foram-lhe para o rosto. Eu acredito que foi um beijo teu, ou uma carícia. A Carolina agarrou várias vezes em cinzas do teu corpo atirando-as ao mar. Caiste no mar pelas mãos das tuas filhas, e foste eterno. Elas eternizaram-te. Tal como os teus pais e os restantes, que o fizeram com tanto amor e carinho. Sou-te sincera, fixei-me tanto nas meninas e na forma bela de reação delas que me distraí e ão me recordo bem de todas as pessoas que estiveram lá. Ainda assim, reparei um pouco em todas as pessoas. Pelas expressões, posso dizer, não foi triste. Foi, sim, um eternizar das memórias que temos contigo. E a partir de hoje, qualquer praia onde um corpo se banhe entrará em contacto contigo. Porque o mar é todo o mesmo, e tu estás espalhado por ele. Com ondas espumantes que dizem em perpétuo sentimento o quanto tu nos amas a todos. E o quanto todos nós te amamos.
Enquanto todos dispersaram, eu continuei ali por mais uns segundos. Molhei os pés naquela água, cheia de ti. Senti-te perto de mim, banhando-me no mar onde tu estavas espojado. Fechei os olhos, em lágrimas inevitáveis, com o vento embater nas minhas faces coradas e as tuas cinzas aos meus pés. Prometi então, a ti e a mim, silenciosamente, que um dia eu voltaria ali de mota. Ao Cabo da Roca e àquela praia. Um dia, mesmo que seja num futuro longínquo, eu voltarei a molhar os pés naquelas ondas. E, nesse dia, vou recordar-te mais uma vez cheia de paz, tal como hoje. Eu irei percorrer numa qualquer mota o mesmo caminho que tu percorreste com a tua mota, e voltarei com o mesmo sentimento intenso e muito amor. Toma esse dia como uma forma de te dizer o que nunca te disse enquanto estiveste vivo. Eu amo-te, meu primo. Todos te amamos. Sei que nunca to disse e talvez seja tarde demais para o dizer, mas é verdade. Então, no dia em que a minha jura se realizar, eu irei mostrar-to. Depois da promessa cumprida poderei sorrir-te com um sorriso como o teu: um grande, verdadeiro e brilhante sorriso.
Até sempre, priminho. Até um dia.