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A Morte Na Evolução

Vivo numa casa só minha. Apenas eu lhe conheço os recantos. Abro a porta em direção ao exterior. Mundo imenso e desconhecido. Nem sabia que era habitável. Dentro da casa não se ouvem os resmungos da população e sempre pensei que estava só. Mas, afinal, estamos todos vivos e somos todos habitantes deste mundo mortal. O que seremos nós em comparação com a imensa galáxia, nem eu conseguiria decifrar por completo. Apesar disso e com toda a certeza, todos sabemos, somos vulneráveis. Não somos apenas miseráveis e vulneráveis seres vivos. É real e vejo-o agora mesmo: somos todos iguais.

Olho. É a primeira vez que observo realmente o mundo ao meu redor. Suponho que é isto que se vê quando se olha realmente. Está ali uma coisa. É exatamente igual a mim. Julguei que, aqui fora, tudo seria diferente. No entanto, ali está aquela coisa. Tem pernas, olhos, nariz, boca, orelhas e até um par de pés para andar. Acho que se chama Ser Humano. E é tal como eu. Pode pensar e funcionar sem quaisquer problemas. Pensei que o mais surpreendente, do outro lado da porta da minha casa, seriam as cores que eu nunca vi. Mas, na realidade, o mais fascinante são as pessoas. Pessoas como eu. Tal como eu.

Caminho descalça. Pé ante pé. Procuro redescobrir o mundo que só conheço em sonhos. Observo, sempre atenta. Ali está uma árvore. Na minha imaginação, havia mais destas. As pessoas, cheias de pressa, olham para os seus pulsos e entram em pânico. Até é engraçada a forma como se dedicam tanto às suas enormes pulseiras com ponteiros e números. Uma pessoa, já velhinha, caiu no meio da estrada e ninguém a está a ajudar. Há apitos por todo o lado. Nas fábricas, nos carros, nas lojas, nas campainhas das grandes casas. Aqui fora também cheira mal e o ar está todo cinzento, com grandes nuvens negras a cobrir o céu. Em minha casa, cheirava a alfazema, rosas e bolo. Cheirava ao que eu quisesse.

Tento encontrar aquilo que sempre pensei existir: flora e fauna. Corro. Anseio pelo ar puro, a luz, as estrelas, o assobio relaxante de um pássaro a cantar. Anseio por uma floresta, um lago, um rio, um mar. Anseio por pequenas casas caseiras e sorrisos. Fraternidade, igualdade, companheirismo, educação, respeito e muitas gargalhadas. Nada disso existe. Foi tudo substituído. Por todo o lado, há sujidade, rudeza, máquinas. A indústria, a tecnologia. Chamam-lhe evolução (vi isso na montra de uma loja de tecnologias lá atrás, mas também o vi no rosto das pessoas sem expressão). Tentamos reparar as invenções e esquecemo-nos de nos repararmos a nós próprios. Evolução. Isto é quase uma piada para mim. Não existe nada natural, criámos tudo (ou destruímos tudo). Pouco importa a esta gente o facto de a água acabar daqui a umas décadas, pouco lhes importa o programa de defesa da natureza, a reciclagem, a proteção dos animais. Enquanto existir cérebro e não existir consciência, nada mais haverá do que esta dita evolução. E quando a consciência chegar, estaremos todos mortos. Seja por desidratação ou guerra, talvez até uma explosão nuclear. Quem quer saber? Ninguém.

Estou farta de observar. Vou para casa. Não conseguiria mudar o mundo mesmo que quisesse. Amanhã acordarei e voltarei a concentrar-me em mim e na minha enorme pulseira com ponteiros e números. Chamam-lhe relógio. As futuras gerações não saberão o nome disto, pois haverão telemóveis na era digital. Aí o tempo poderá ser parado e rebobinado e atrasado e adiantado. Choro durante o meu regresso. Lamento. Lamento do fundo do meu coração.

A minha casa não fica no meu coração. Fica no meu ego. Tive que sair dela para poder ver. Na minha casa, no meu ego, na minha imaginação. Aí tudo é melhor. Tudo é como um sonho. Mais me valia não ter aberto a porta. Talvez conseguisse viver melhor se nunca tivesse visto o tamanho desta crueldade. Talvez conseguisse continuar a ver o mundo como o mundo da minha imaginação: com flora e fauna. E com pessoas iguais que se vêm como iguais, e não como diferentes.

Estou em casa. Tal como todos os outros. Tal como tu. Aqui, não há outro mundo que não o meu. Não há compreensão ou misericórdia pelos outros. Aqui, cheira ao que eu quiser. E nada mais do que isso. Aqui, o mundo pertence-me e o mundo é lindo. Tem flora e fauna. É habitado por pessoas iguais que se vêm como iguais, e não como diferentes. Esta é a minha casa. O meu mundo.

 

Para lá desta porta, não há mundo, há morte. Morte na evolução.

Lara Filipa xX

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