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A Dor

Hoje, faz quinze dias desde que partiste. Mais parecem quinze anos. Eu já perdi pessoas antes mas nunca me soou assim tão mau. Nunca me vi face a face com uma verdade assim tão dura. Talvez seja por teres sido o mais próximo de mim. Torna-se tão difícil para todos nós que já cá não estejas.

 

Eu não sei quantas pessoas já passaram pela perda de alguém querido, mas não o desejo a ninguém. Infelizmente, é quase uma inevitabilidade da vida. Eu gostava de prevenir as pessoas para a dor. Saber explicar como é para que estejam preparadas. No entanto, sei que nem isso as iria preparar para o derradeiro choque, para a mágoa extrema. Vou tentar explicar, de qualquer forma, não tanto para me prevenir quando me perguntarem como é, mas sim para me esclarecer, porque eu própria quero entender este processo pelo qual estou a passar.

 

É a tensão que faz doer o corpo. As lágrimas que fazem a cabeça latejar. O vazio da opressão que esmaga os ossos e o pensamento. A solidão. A escuridão, até. E só queremos um abraço. O abraço dessa pessoa querida que se foi. Revivemos os momentos que passámos com essa pessoa a pensar "eu poderia ter feito isto" ou "eu poderia ter feito aquilo". É como perder um braço ou uma perna. Um sentimento avassalador.

 

Mas o início (os primeiros dias após a perda) não é assim tão mau. Não é assim tão mau porque parece que não aconteceu. Parece que essa pessoa apenas foi ali e já volta. Temos esperança que chegue o momento em que alguém diga que foi uma brincadeira e que a pessoa em questão continua cá. Ainda assim, essa pessoa não volta. O problema pior vem depois. Vem mais tarde. Primeiro é a negação e depois o estalo.

 

A notícia vive, revive, chega, repete, parte, remói e queima dentro da nossa cabeça. O problema chega quando os verdadeiros e mais mórbidos pensamentos assolam a alma, pensamentos como "eu nunca mais vou ouvir aquele riso". Aí, o mundo cai. A pior parte é a dor. A pior dor de todas. Uma dor que rasga o coração em pedaços incontáveis e desconcertáveis, porque quando algo quebra nunca mais é possível encaixar todas as peças, um escritor de quem gosto muito ensinou-me isso. Mesmo que as últimas duas peças queiram a junção, ela não existe. Fica sempre um buraco por preencher. Uma falha. A única falha capaz de nos destruir.

 

Eu sei que nunca mais voltarei a ser quem era. Há muitas mudanças que ocorrem ao longo da vida. Essas mudanças podem ocorrer de duas formas: pacificamente, porque obviamente não sou a mesma que escreveu o verso atrás (já dizia o Manuel Alegre); e outras mudanças drásticas e mais relevantes que acontecem com grandes acontecimentos, como quando morre alguém que nos é próximo.

 

De início ainda me questionei se essa dor algum dia desapareceria, mas não, ela não desaparece. Ela fica. Come-nos por dentro como uma morte lenta. Não significa que vamos sofrer para sempre, até porque o ser humano tem uma enorme capacidade de adaptação. Então, acomodamo-nos à dor. A dor é rotineira e torna-se parte do dia-a-dia de tal forma que nem notamos que ela lá está. Habituamo-nos a ela. Dolorosa e lentamente enquanto ela continua a comer-nos por dentro. A dor rói-nos cada vez mais e mais. Desabamos aos poucos. E ficamos com frio. Não o tipo de frio que se resolve com um cobertor, mas sim um frio interior que remexe os órgãos e parte o coração outras mil vezes. O frio vai e vem e vai e vem. Vai embora quando nos voltamos a acomodar à dor e depois volta, mais tarde, para nos relembrar de que ainda lá está. Continua lá, sobrevivente, a fazer-nos sofrer. É quase como se nos afogássemos, sem sabermos, num sonho.

 

Parece horrível, eu sei. Mas é assim mesmo: horrível.

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